Confrários!: Neologismo utilizado pelos participantes da Confraria, nascido da junção das palavras confrades e revolucionários!

domingo, 11 de janeiro de 2015

III Antologia - Confraria dos Poetas: "Cinza", de José Eduardo Mendonça

CINZA

Há um cinza uniforme sobre tudo,
poeira sobre a mobília
na casa de súbito abandonada,
onde as janelas batem com o vento
e a umidade cuida de apodrecer
objetos com os quais ninguém mais se preocupa,
cuja própria existência quem um dia deles soube se esqueceu.
Todos se foram em silêncio
sem nem deixar qualquer memória.
Há um cinza uniforme sobre a alma
que não sabe mais que corpo habitar.
Há uma cinza uniforme no coração
que bate solitário e sem eco,
enquanto um outro coração quer amar,
mas olha para o luto e a perda
e não quer tirar as bandagens
para não expor à luz a cicatriz
onde antes havia o corte e a dor.
Há um cinza uniforme sobre o corpo
que não pode partilhar seus desejos
e tenta criar um contato
e encontra refração,
um pedido para que ele, alma e coração
esperem, esperem,
um dia que quem sabe virá,
quem sabe poderá não vir,
desacontecimento rompendo o círculo
para tangenciar a vida e espirrar
como cometas espirram
no choque com o calor da atmosfera.
Há um cinza uniforme sobre tudo
que o dia cinza reluta em disfarçar.
Há um choro atrás da porta,
um trinco e uma chave,
há um grito sem repercussão.
Há um homem que caminha na chuva e sente frio
e que quer varrer dos ombros
o peso de sua condição.
Há um coração que não pode chegar
e não pode ir embora
e seu amor é um tributo, uma sina,
dádiva, magia e mistério.
Há um coração que está dentro de um homem
que apenas pede que a vida possa prosseguir.
Com sobressaltos e cambalhotas,
mas que possa prosseguir.
Há um cinza uniforme sobre um coração cansado
que poderia cantar suas tantas melodias,
espalhar sua palheta de infinitas cores,
dizer coisas suaves em um ouvido que ouvisse,
se espalhar e esparramar e,
junto com o corpo que o abriga,
estar com sua amada em seus folguedos,
deixar escorrer sobre a pele o toque
que só quer ser carinho.
Mas há um cinza uniforme sobre tudo
e o homem dobra mais uma esquina,
enquanto a água escorre em seu rosto,
lavando o sal que se abriga em seus sulcos.

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